HISTÓRIA DE UM
EX-HUMANO
Olá.
Meu número é 334455789 e minha série de produção é ÚNICA. Mas, um dia, eu fui
conhecido por João, se eu bem me lembro esse era o meu nome. Quando criança
minha chamava-me carinhosamente de Joãozinho, mas isso foi há muito tempo
atrás, há quase 200 anos. Mas, vamos ao que interessa. Hoje vim aqui para contar
a minha história, o que lembro dessa vida, cuja morte parecia-me nunca ia
chegar. Decidi fazê-lo agora, pois minha memória começa a falhar, dizem que
estou perto de morrer, que idéia, irei no máximo para o depósito.
Eu
nasci humano. De parto normal, inclusive. Tive uma mãe, um pai e dois irmãos.
Minha família era unida, mas eu logo cresci e percebi que o mundo não se
parecia em nada com a minha casa e que para que sobreviver nele eu precisava
mudar, eu precisava ser diferente, eu precisava me tornar uma máquina, uma
máquina de produção, entendam bem, esse era o plano, nunca pensei realmente,
que me tornaria uma máquina por completo.
A
propaganda me soava muito bem: “Seja melhor que os outros e ganhe mais
prestígio”, “Você precisa ser mais competitivo se quer chegar mais longe”,
“Você precisa trabalhar mais se quer ter um carro igual ao do seu vizinho”.
Pensando assim e crendo cegamente que estava no caminho do sucesso eu
acreditei, fechei os olhos e segui em frente.
O
primeiro passo que dei foi entrar na faculdade, porque no meu país ninguém é
alguém se não tiver um canudo e lá dentro, além de aprender todas as técnicas
da minha profissão, eu aprendi, sem nenhum professor ensinar, a ser
competitivo. Pois não importava se eu excedesse a mim mesmo, se eu não fosse o
melhor ou pelo menos um dos melhores em um grupo. É claro que houve pessoas que
tentaram me tirar desse caminho de sucesso, alguns professores nos tentavam
fazer pensar e refletir, não sabiam eles que isso não traz dinheiro nem
prestígio, soubessem eles que pelas costas nós os chamávamos de loucos, e o
quanto julgávamos toda aquela baboseira uma perda de tempo. Mas, o tempo, ah, o
tempo, provou que a ideologia deles era tão forte que hoje penso que para eles
éramos apenas uma manada de jovens sem salvação.
Eu
me tornei uma grande máquina, digo, um grande homem. Na minha profissão, eu me
destacava, meus colegas brindavam o meu sucesso. Eu me sentia no topo do mundo.
Até que um dia, por volta dos meus 40 anos, eu acordei para um corpo que não
era o meu. Todo revestido de metal, com um visão e audição perfeitas, meu
pensamento imediato foi “Agora, além de tudo, sou um super-herói”. Logo
percebi, que não, aquela era a carapaça que refletia o meu interior, meu
coração que há muito não servia para sentir apenas para me manter vivo
tornou-se apenas uma bomba e meu cérebro, deserto de idéias e pensamento
próprios, só me servia a partir de então para o que eu sempre o havia
utilizado: resolver problemas. Na época não dei muita importância. Vejam bem,
eu era assim, não me importava se eu já era incapaz de sentir ou pensar porque
eu nunca havia me importado com isso antes e desde que todo aquele metal não
incomodasse aos outros, por mim estava tudo bem.
Mas,
uma surpresa ao sair de casa: muitas “pessoas” na rua eram máquinas, havia se
transformado como eu, e nos dias que se seguiram muitas outras também sofreram
essa transformação, era como uma epidemia. E foi maravilhoso, porque, novamente
eu era igual a todo mundo, por dentro e por fora.
Nós
vivemos felizes assim por muito tempo. Algumas pessoas, estranhamente, nunca
sofreram essa transformação, mas elas sempre foram consideradas diferentes
mesmo, nunca realmente se entregaram ao trabalho, como nós, agora máquinas,
fazíamos, e nos orgulhávamos disso. Porém, não mais.
Agora,
no fim do meu prazo de validade eu vejo o quanto sinto falta do contato da pele
de outra pessoa, pois eu me esqueci de explicar no início porque minha série é
ÚNICA: eu e todos os outros daquela época nos TRANSFORMAMOS, hoje ninguém mais
se transforma, pois ninguém nasce mais humano para se transformar (ou não),
todos os modelos novos são de fabricação em série.
Eu
lembro quando começamos a perder a capacidade de nos comunicar e tudo que
tínhamos para dizer um ao outro, era feito através de mensagens, e-mails,
recados cibernéticos, ninguém mais pegava na mão de ninguém para consolar.
Recordo quando abraçar era como dizer mil palavras com significado infinito.
Mas,
sentir, eu já nem sei. Tudo isso que me fazia humano, eu nunca entendi. Nunca
parei, olhei para dentro e tentei entender quem eu era – um ser singular com
milhões de possibilidades. Eu podia ser o que eu quisesse, seguir o caminho que
eu desejasse, mas traçar seu próprio caminho e orgulhar-se, mesmo com medo, foi
uma tarefa dos heróis que morreram sem nunca se transformar. Por que nunca
escutei suas palavras¿ Era demais me despir por um segundo sequer da minha
certeza cega e olhar através da lente de outrem¿ É que nesse mundo em que eu
vivo qualquer coisa direita é demais.
Se
eu hoje, neste meu último dia de validade, eu pudesse escolher um último
desejo, seria falar com um humano, tocar sua pele e lhe perguntar: é preciso
ter coração para sentir¿ Ou o sentimento é uma emoção que é transformada pelo
cérebro em pensamento¿ Ou o sentimento é um pensamento transformada no coração
em emoção¿ Ou, será que sentir é algo tão celestial que impossível de entender
e por isso é preciso ser humano para vivenciar isto¿ O que é preciso para
sentir¿
Sarah Regina
Gostei bastante parabéns Sarah Regina
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